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segunda-feira, 12 de julho de 2010

A PAIXOA

Ainda tive outra “avó”. Morava no rés-do-chão direito do prédio onde nós ocupávamos o primeiro andar esquerdo.

Este prédio, que ainda hoje existe, situa-se muito perto da linha férrea, na estação dos caminhos-de-ferro de Leiria e era destinado ao uso e fruição de determinada classe de funcionários da CP. Como o meu pai era ferroviário em desempenho de funções na dita estação e o Sr. Paixão também, ambos incluídos nesse grupo, tinham direito à moradia. É claro que a Paixoa, era assim que eu, sem cerimónias, a tratava (para desespero da minha mãe), era a D. Arlete, esposa do Sr. Paixão.

Na traseira do prédio, virada à linha havia um pequeno jardim com uma fonte enfeitada com conchas, que tinha um repuxo, e arbustos de flores brancas na Primavera, daquelas em que mal tocando, as pétalas se desprendem como papelinhos de carnaval que se esqueceram de colorir. O espaço deslumbrava-me mas, nunca pude brincar aí. A linha estava a cerca de cinco metros e a minha mãe achava que não havia recomendação que acautelasse a minha curiosidade. Assim brincava à rédea solta pelo espaço murado, em frente do prédio, virado à estrada e pertença de todos os moradores, onde na parte que lhe coube, o meu pai mantinha uma pequena horta que o “Coquelimoque” cuidava. O “Coquelimoque” não falava bem, daí a alcunha, mas sabia cavar e fazer direitinhos os regos onde se plantavam as couves e isso é que importava. Este espaço tinha um portão de acesso à linha, feito de ripinhas cruzadas e sempre fechado à chave que me permitia ver o comboio aos quadradinhos.

Mas ver chegar e partir os comboios aos “quadradinhos” era coisa que não me entusiasmava. Eu gostava de os ver inteiros, com as carruagens a desfilar linha fora e fazia-o empoleirada no tronco do pessegueiro, onde cheguei a ficar pendurada pelo bibe, com a minha mãe na varanda a gritar em dó maior repetidamente “ai que ela mata-se”"ai que ela mata-se", achando que “segurar-me” com os olhos evitaria a queda. Nesse dia valeu-me a Paixoa que, quando o bibe se rasgou, estava em baixo de braços abertos para me acolher.

Recordo da casa da Paixoa apenas a fotografia de um jovem de caracóis e ar angélico, tocando violino, que ela tinha na mesa-de-cabeceira dizendo ser o filho e que eu achava que não correspondia de forma alguma ao pai do Tó, seu neto e meu amigo predilecto e a mesa da cozinha.

A Paixoa passava a ferro na cozinha, cuja porta dava para o quintal. Nas tardes em que se cumpria o ritual, abria uma pesada tábua de madeira que servia para o efeito e ia passando a roupa e contando histórias que eu ouvia deitada debaixo dessa mesa, num estrado de madeira que hoje as mesas já não têm mas que na altura era uso.

Eu adorava esta senhora a tal ponto que, quando o Sr. Paixão foi promovido a chefe e foram morar para a Estação de Monte Real, a minha mãe levou-me a visitá-la logo na primeira semana, com medo que eu adoecesse com saudades. E fiz uma bandeira! Um trapo de tafetá que a minha mãe, a pedido, me cedeu e que atava nas grades da varanda sempre que ela vinha a Leiria. A quem passava na estrada, eu gritava da varanda ”está cá a Paixoa”.

A D. Arlete morreu quando eu tinha nove anos. O Tó, mais novo que eu dois anos, andaria então na segunda classe e, penso que talvez por isso, todas as crianças da escola acompanharam por alguns metros o funeral. Recordo a dor feita raiva com que olhava o caixão e desejava gritar “não gosto de ti, não gosto de ti", mas a voz não saía e fiquei calada, olhando o cortejo e odiando aquela caixa que a levava.

A morte da D. Arlete foi a primeira partida que a vida me pregou.

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