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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A AMOREIRA

No pátio da escola primária que frequentei, havia no canto esquerdo, quando se entrava no recreio, uma enorme amoreira onde todas as crianças da escola se abasteciam de folhas para alimentar os bichos-da-seda.

Pegavam com o pátio da escola terrenos de particulares e naquele canto da amoreira não havia muro, a fronteira era definida por uns pilares de cimento pintados de branco atravessados por três fiadas de arame farpado. Imaginam coisa mais imprópria para estar ao alcance de crianças? Mais tarde a legislação proibiu o arame farpado junto das escolas mas, pelos vistos, naquela altura seria permitido.

Eu nunca gostei de correr mas não desperdiçava uma oportunidade de me encavalitar em tudo o que desse para trepar. O treino ia dos pessegueiros do meu quintal às figueiras das minhas avós e, claro está, a amoreira da escola também não escapava. As folhas mais tenrinhas estavam lá no cimo e os bichos-da-seda mereciam o sacrifício. Sim, Só queria mesmo as folhas, uma boa desculpa para trepar, porque aquelas amoras eram muito desenxabidas, saborosas eram as dos silvados, bem temperadas pelo pó dos caminhos.

Convém lembrar que na altura as meninas não usavam calças como os rapazes, mas como também não brincavam juntos, não havia perigo de mostrar as pernas. Também devo esclarecer que gostava de me aventurar sozinha, já me chegava vencer os meus medos, não precisava dos medos das outras a puxar-me para trás.

Deveria ter chovido recentemente, porque eu tinha o meu chapéu-de-chuva. Um chapéu de seda lilás, que seco me brindava o olhar com uns reflexos rosados que eu achava uma maravilha. Coisa tão sem graça se comparado com os que agora existem no mercado para crianças!

Larguei a mala dos livros e trepei com o chapéu-de-chuva na mão. Avaliei qual seria o melhor sítio para o intento que levava em mente (desta vez não queria folhas) e, bem equilibrada, abri o chapéu. E assim, da braça mais próxima passei para o arame farpado. Eu tinha visto o número no circo, era tão fácil! Ensaiei uns passos de chapéu aberto, tentando percorrer o arame e… estatelei-me no chão, felizmente no terreno da escola, só que… com uma vareta do chapéu espetada na parte interna do joelho direito.

“O chapéu? Estragou-se o chapéu?” Arranquei a vareta da perna, que felizmente não tinha penetrado muito, endireitei-a, experimentei o chapéu. Abria e fechava na perfeição. O chapéu estava bem, na minha perna ficara um buraquinho redondinho, nos joelhos umas mazelas que com terra se disfarçaram e na minha alma a frustração da falta de aptidão para a profissão que escolhera.

Há cerca de dois anos espetei uma agulha de croché na perna direita, três centímetros e meio de aço, com uma farpa na ponta, que ainda estou para saber como consegui tirar. Na perna, só restou um buraquinho redondinho. Tal como em criança, também não rebentei um único vaso sanguíneo.

Vêem o que a ignorância faz à vida das pessoas? Se em pequena soubesse o que sei hoje, teria desistido de trabalhar no arame, mas poderia muito bem ter sido faquir.

5 comentários:

  1. A "culpa" foi do seu "post", Rui Pascoal, falou da Rua das Amoreiras e eu lembrei-me da amoreira da minha escola.

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  2. Também saltei muros, para alimentar os bichos-da-seda, mas com uma fisga no bolso. Chapéu-de-chuva? Isso é coisa de meninas... nós éramos muito machos!
    :)

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  3. Como eu gostaria de lembrar-me de histórias da minha infância. Como eu adoraria saber como a Isabel,contá-las com essa qualidade, essa frescura com se tudo isso tivesse ocorrido agora mesmo.
    Mas já seria bom que como uma criança pudesse ouvir alguém que me contasse histórias assim.

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  4. Olá, "euchavi"! Que sorte a sua não lhe terem contado estas histórias de meninas tontas quando era pequeno! Assim, não correu o risco de tentar imitá-las. Já imaginou o que me poderia ter acontecido naquela tentativa louca de fazer equilíbrio na arame farpado, com o chapéu de chuva na mão? Garanto-lhe que as minhas filhas nunca ouviram contar semelhante aventura porque sou das que acho que mais vale prevenir...

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  5. Rui Pascoal, o meu neto de cinco anos, quando se refere ao sexo oposto diz: "Meninas... nhac!"
    Vá, actualize-se...

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